Um ensaio sobre estresse, parte 1

Caio Vaccaro
7 min readOct 6, 2020

Cada vez mais cresce o número de pessoas com estresse e burnout no trabalho ao redor do mundo. O fato de ter passado por essa experiência, além da memória clara de diversos amigos e profissionais na mesma situação têm me motivado a escrever mais sobre o assunto, especialmente por acreditar que o mercado de tecnologia possui um talento especial para produzir tal situação.

“A International Stress Management Association (Isma-BR) estima que 32% dos trabalhadores brasileiros sofram com esse tipo de stress. Em um ranking de oito países elaborado pela Isma-BR, estamos à frente da China e dos Estados Unidos — e perdemos apenas para o Japão, onde 70% da população apresenta os sintomas do burnout.” — Super Interessante

Quanto mais eu falo publicamente sobre isso, mais percebo que é muito comum pessoas estarem estressadas, ansiosas ou com algum nível de burnout sem terem consciência disso. O que seria um estresse normal? O estresse saudável é mais ligado ao corpo e sua capacidade inata de evoluir e lidar com situações desafiadoras , enquanto o não saudável relaciona-se com o aspecto mental e emocional.

“Em 2013, uma pesquisa realizada pelo Ibope demonstrou que 98% dos brasileiros se sentem cansados mental e fisicamente. Os jovens de 20 a 29 anos representam a maior fatia dos exaustos.” — Nexo, Por que vivemos na sociedade do cansaço

Assim, estão ligados ao estresse saudável:

  • O desenvolvimento, aperfeiçoamento e crescimento pessoal natural, sem imposição externa ou interna
  • Os desafios para garantir a sobrevivência (como, por exemplo, a necessidade de conseguir mantimentos)
  • Como se proteger de perigo
  • O esforço físico, adaptação e competição saudável nos esportes

Por outro lado, o estresse não saudável relaciona-se com a não aceitação ou a insatisfação com as coisas conforme elas estão agora, impossibilitando caminhos de crescimento e consequentemente não conseguir viver no momento presente, preso em memórias passadas ou projeções futuras.

Photo by SwapnIl Dwivedi on Unsplash

É normal do ser humano ter algum nível mínimo de descontentamento, afinal de contas estamos sempre fazendo alguma coisa. Se o senso interno de contentamento fosse 100%, não sentiríamos a necessidade de fazer coisas o tempo todo. Podemos concordar que esse nível de contentamento é praticamente utópico. Ter um senso de motivação é normal e saudável. Em contrapartida, o perfeccionismo nocivo — uma motivação distorcida e insaciável de querer consertar e aperfeiçoar tudo — vem há algum tempo minando o bem estar de muitos de nós e muitas vezes está no cerne do estresse, ansiedade e burnout. Neste artigo perfeccionismo se refere a um “perfeito” projetado e idealizado, e, portanto, se distingue do aperfeiçoamento , que é sua contrapartida saudável. Como desenvolvemos tal hábito? Será que o meio e o estilo de vida atuais influenciam?

Vivendo no hoje ou no amanhã

Ao mesmo tempo que a evolução da tecnologia nos proporciona imensos benefícios como segurança, conforto e saúde, no âmbito individual ela cria necessariamente uma dicotomia entre viver no presente e viver no futuro, a ponto de — em casos de exagero — trazer desequilíbrios físicos e emocionais.

O homem natural era perfeccionista?
Originalmente, o homem pré-histórico possuía um senso básico de insatisfação que era funcional e voltado especificamente para questões da sua natureza. Esse movimento — a necessidade de fazer mais — era voltado para imposições naturais de sobrevivência e reprodução. Entretanto, até hoje temos o mesmo corpo, dotado com os mesmos mecanismos básicos, mas nosso estilo de vida está na grande maioria das vezes longe de ser compatível com nosso organismo.

Luta/fuga e descanso/digestão
Nosso sistema nervoso tem dois grandes sistemas, o simpático e o parassimpático. O primeiro é o mecanismo de luta e fuga, da ação, e da resolução de problemas. E o segundo é responsável pelo descanso, digestão e relaxamento. Em uma rotina pautada nesses dois sistemas, um homem pré-histórico ou mesmo uma pessoa que tenha um estilo de vida simples hoje em dia teria os seguintes atributos:

  • Parasimpático (P): Uma boa noite de sono reparador.
  • Simpático (S): Sair do local onde mora, caminhar, procurar e preparar comida.
  • P: Comer, digerir e reproduzir.
  • P: Descansar.
  • S: Caçar comida (ou trabalhar). Preparar comida.
  • P: Comer e digerir.
  • S: Caçar e explorar território (ou trabalhar e traçar metas e objetivos). Preparar comida.
  • P: Reproduzir, comer, digerir e dormir.

São dois mecanismos com um contraste sensorial muito grande. Em um, existe a propensão a fazer, resolver, descobrir, ultrapassar limites ou até lutar contra e fugir de perigo, seja no presente ou futuro. Em outro, existe a total falta de preocupação com qualquer perigo ou noção de que algo precisa ser feito, além da segurança sensorial e o descanso no momento presente. São grupos de hormônios diferentes e o corpo reage de forma muito distinta em cada um deles.

Photo by Gaelle Marcel on Unsplash

A noção de ação e descanso é socioculturalmente construída

Acontece que as noções de “descanso” e de “o que precisa ser feito” mudaram radicalmente ao longo da história, e, dependendo da cultura, experiência e estilo de vida, é muito possível que esses dois sistemas saiam de equilíbrio e você nem consiga perceber. Nesse caso, a tendência é que você sinta que o estado do seu sistema nervoso “é você”.

O acúmulo de conhecimento e evolução tecnológica, do período pré-histórico até o início da agricultura, ainda era voltado para as funções e necessidades básicas de sobrevivência. Em outras palavras, tratava-se de conseguir vantagens para a sobrevivência e garantir o bem estar do ser humano, com ferramentas, escrita, linguagem, conservação de comida e vestimentas.

Uma das possibilidades de explicação é a de que a partir da agricultura e com a noção capitalista de acúmulo, também veio uma certa mudança dessa noção de propósito, pois a partir de então foi possível acumular alimento para o futuro. A ideia de “sobrevivência” passou a ser muito mais especulativa do que factual, e a ideia de que“quanto mais eu tenho, mais ‘seguro’ estou da minha sobrevivência, ‘sempre’” ganhou importância. Enquanto em equilíbrio conseguimos garantir segurança e sobrevivência no presente e mesmo assim descansar em relação aos possíveis perigos futuros, em desequilíbrio nunca conseguimos descansar, preocupados que estamos com os infinitos problemas futuros. Isso cria um desafio ilusório, um potencial problema a ser resolvido sempre e constantemente — conseguir acumular mais e de forma mais segura.

Capital e o infinito
A partir da transição do feudalismo para o capitalismo, a “sobrevivência” vira “sucesso” com a criação do capital e do crédito, bem como das raízes do acúmulo infinito. A partir desse momento, a busca incessante pela eficiência e produtividade cresceu abruptamente, dando origem a todas as métricas exatas de tempo, dimensões, peso, e assim por diante. Com a Revolução Industrial, vieram os processos, cadeias de produção e resultados esperados, medidos e controlados com metas, garantindo formas cada vez mais inteligentes de manter um sucesso futuro. Mesmo estando tudo bem e tendo sua sobrevivência garantida hoje, você ainda está preocupado com o amanhã. Seguro esta semana, mas preocupado com a semana seguinte. E assim por diante, dificultando cada vez mais o acesso ao sistema de descanso e ao momento presente. É claro que é muito útil tentar prever o futuro e garantir sua sobrevivência, mas o equilíbrio entre viver no agora e planejar o “amanhã” é essencial.

O estresse e o desenvolvimento de software

Software nada mais é do que uma tentativa de humanos ensinarem a uma máquina — que não tem consciência de si para discernir e se virar — soluções no presente à prova de erros e mudanças futuras. Ou seja, programadores se preocupam com a máquina, tentando imaginar todos os cenários futuros possíveis para que ela esteja preparada e pré-programada para lidar com essas situações.

Somos especialistas em prever problemas futuros e blindar sistemas o máximo possível contra eles, nos antecipando, escrevendo códigos defensivamente e criando testes automatizados para tentar achar falhas. Uma habilidade invejável é a de intuitivamente achar a raiz de um “bug” sem ter que procurar passo por passo.

Estamos no cerne do mecanismo que possibilita a evolução da tecnologia — e, se isso pode trazer problemas para pessoas que apenas usam a tecnologia — , imagine para programadores que internalizam esse modo de pensamento? Acredito que conhecer de onde vem essa necessidade de evolução tecnológica, a raiz da sua profissão, deveria fazer com que tenhamos mais consciência e lucidez para usar essa mentalidade apenas no trabalho, e assim usufruir os benefícios dela.

Photo by Emile Perron on Unsplash

Da mesma forma que é importante discernir o perfeccionismo do aperfeiçoamento, também é fundamental entender que a forma de pensar que usamos para programar é uma ferramenta, com uma história, necessidades e propósitos específicos. Ter esse conhecimento nos permite ter consciência de como o jogo funciona e contribui para que nos mantenhamos no momento presente — levando ao emprego da função de resolver problemas por decisão própria ao invés de ser levado pelo processo e assim ter uma vida profissional mais saudável e menos propensa a burnout e estresse ☕️.

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